MENU


















Agora que terminei o ensino médio
e comecei a faculdade quase não tenho tempo para nada, faculdade integral é
assim: adeus vida social. Só vejo as pessoas do meu bairro em minhas andanças
de vai e volta, o restante da civilização é docente ou discente. Ah, meus pais
e meu irmão não contam porque moram na mesma casa que eu, que ultimamente
parece mais um hotel. Confesso que tenho um relacionamento sério: faculdade e
cama. Sim, eu Carolina, sou casada com as duas, são minhas companheiras
inseparáveis, uma me dá trabalho não remunerado e a outra o aconchego do
repouso.





O bairro em que moro apesar de ser
tranquilo, a rua é bem movimentada, afinal muitos moradores e comércios antigos,
ruas ainda com muros bem baixos. Aqui a violência ainda não se criou, todo
mundo conhece todo mundo e todo mundo conhece Dona Marisa, e Dona Marisa
conhece todo mundo. Dona Marisa é a repórter "ESSO" da nossa rua, segundo meu
pai, ela
é a primeira a dar as últimas e a
testemunha ocular da história. 





Dona
Marisa, passava a maior parte do seu tempo na janela de sua sala, uma janela
enorme que dá uma visão privilegiada da rua, quem entra e quem sai, se ela
estiver na janela pode perguntar que ela sabe. Por vezes, já perguntei se ela
já tinha visto meu pai chegar do trabalho, e a mesma me dizia que sim, outra
vez me disse que ele chegou cedo e outra mais tarde porque ele estava conversando
com Seu Rodolfo sobre o jogo de futebol. Pasmem! Ela sabia mais do meu pai do
que a minha própria mãe, mas isso era com todos senão eu diria que ela estava
interessada nele.





Eu
tinha uma certa pena dela, pois o marido era caminhoneiro, passava um longo
período viajando, ela não tinha filhos, só tinha suas cadelas: Jade e Pérola. Às
vezes eu a escutava conversando com elas como se fossem pessoas, acho que a
solidão deixava ela assim, notava que ela mal sorria, não se arrumava, até de
pijama ficava na janela. Ela não gostava de sair de casa, só saia quando não
tinha jeito, para fazer as compras e receber o dinheiro que Seu Josué,
seu marido, depositava para as despesas. Pão e jornal entregavam em casa, e se
quisesse algo da feira ou do açougue ela pedia para as vizinhas comprarem. Acho
que ela mantinha uma dispensa farta de produtos não perecíveis, e se tivesse
uma guerra, ou uma catástrofe ela abasteceria todo o bairro.





No
início eu pensei que ela só ficava na janela a vigiar a vida alheia enquanto o
marido estava fora, mas me enganei, quando ele chegava era a mesma coisa, eles
não saiam juntos. Seu Josué, então comprava o pão, o jornal e  sempre no final de tarde jogava carteado na praça com os amigos. E Dona Marisa, como sempre na janela, quando
não estava totalmente aberta, eu a via pela pequena fresta que ela deixava.





Durante
cinco anos continuei a minha rotina e Dona Marisa a dela, terminei a faculdade e no
dia da minha formatura cheguei tarde da festa com meus pais e meu irmão, e
encontrei a janela fechada. Até estranhei, mas provavelmente ela devia estar
dormindo. Bom, até o "Jornal Nacional" termina porque ela não teria sua hora de
descanso, não é?





No
dia seguinte à formatura, terminei definitivamente minha bigamia e comecei a
estagiar numa empresa conceituada da região, tinha tempo para respirar e
conhecer pessoas, e conhecer a vida. Até marquei um encontro... mas passei em
frente à casa dela e nada. 





Um dia
depois todos começaram a estranhar, a chamaram, na verdade a gritaram e nada. Só
ouvimos os latidos das cadelas. Até que meu pai, pulou o muro baixo da casa, e
arrombou a porta. Eu estava com ele e fomos procurando pela casa e a
encontramos deitada em sua cama, morta. Ao lado, na mesa de cabeceira encontrei
uma carta e a li.





Na
carta ela contava que há dias sentia dores estranhas no peito, mas não queria
que Josué soubesse, pois o mesmo da última vez que veio de viagem comunicou que
queria o divórcio, alegando que não a amava mais, entretanto a deixaria com a
casa, e continuaria pagando todas as despesas. Pediu que caso acontecesse algo
com ela, que eu tomasse conta de Jade e Pérola, ou se não pudesse encontrasse
um lar para suas cadelas, mas um lar com amor e janela. No final da carta ela
agradecia a todos pelo bom dia, tarde e noite, pelas entradas e saídas. E dizia
que observava tanto não para fofocar da vida alheia e sim porque queria ver a
vida que ela não tinha, uma vida de idas e vindas, uma vida de amigos, pais e filhos, e não uma vida de uma
janela.











Ciana
Andrade














 








[Dia 3 de Abril] - WEDA 2016 
 


Inspirado na música "Carolina" de Chico Buarque
















Compartilhe

Comente pelo Facebook!

46 Comentários

  1. Uau. Que texto maravilhoso, de um final inusitado. Me perdi nas linhas escritas e imaginei perfeitamente as cenas. Não sei se pelo fato de já ter vivido algo semelhante, mas que sua escrita deixa espaços imaginários perfeitos.

    ResponderExcluir
  2. Obrigada Nil, estou tentando melhorar pois não é o tipo de gênero que costumo escrever. Muito do que escrevo são mais experiências vividas do que ficção, neste aqui tem muito mais verdade do que imaginação. Talvez seja por isso que sentiu isso não? bjs

    ResponderExcluir
  3. Assim como o conto da vó... esse me pareceu muito real! Incluiu até teu nome mesmo.
    E ficou lindo demais!!! Pra quem diz que não é seu gênero... tá arrasando viu?

    Um beijo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Incluí meu nome não amiga, coloquei Carolina para fazer uma menção a música.rsrs Mas...esse é fictício mesmo. Só tenho uma vizinha que tem o costume de olhar pela janela qualquer carro ou moto que para em frente a minha casa, não tem filhos e tem duas cachorras, fora isso não tem nada haver com Dona Marisa.rsrs
      Obrigada, se eu tivesse mais tempo eu ia escrever mais, tentar né.bj

      Excluir
    2. Pra tu ver o que a própria mente é capaz de fazer com a pessoa! Não sei como, mas acabei fazendo a ligação do teu apelido Ciana com o nome Carolina e acabou que virou a mesma coisa dentro da minha cabeça! Não repara nas loucuras... hahahaha

      Excluir
  4. KKk nada amiga, você não é normal e eu também não sou. Está tudo certo entre nós e nossas loucuras.rsrs

    ResponderExcluir
  5. Que texto intenso, fiquei encantada e ao mesmo tempo triste com o conto, em pensar que de fato existe pessoas assim, solitárias que desejam apenas um pouco mais de amor e companhia!!! Adorei seu texto vc escreve muito bem!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Embora seja um conto fictício, infelizmente existem pessoas assim Anady, acho a solidão muito triste mesmo. Obrigada! bjs

      Excluir
  6. Que texto ótimo! Você escreve super bem! <3
    Quem dera eu soubesse escrever assim!
    Beijos!

    http://www.blogdakah.tk

    ResponderExcluir
  7. Texto bem intenso, mas mesmo assim muito bom, gostei muito

    Beijos:*

    ResponderExcluir
  8. Lindo o texto, e bem triste também. Nos mostra que nem tudo que pensamos é o que realmente é, as pessoas precisam de atenção e ajuda quando menos esperamos. Digno de boas reflexões, beijo.

    ResponderExcluir
  9. Texto ótimo e super bem escrito! A tua criatividade é excelente e você ainda não que esse não é muito o teu gênero...eu fico aqui pensando se fosse então. Já tá arrasando assim. :D


    Relíquias da Lara

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é, comecei a escrever contos a pouco tempo. Minha praia é a poesia, tentando melhorar.rsrs Obrigada! bjs

      Excluir
  10. Que texto lindo!!!! Que criatividade meu Deus!! Foi uma leitura que prende, me fez prestar atenção em cada detalhe para saber o que tinha acontecido com a dona Marisa ahahah lindo lindo, adorei!! Beijão ♥

    http://www.sorrisosnooutono.com.br/

    ResponderExcluir
  11. Moça, cê quer acabar com meu coração, né? Eu não tenho estrutura pra essas coisas rs ♥ Que texto lindo e intenso. No finzinho cheguei a me arrepiar. Às vezes temos uma impressão tão errada das outras pessoas e no fim elas nos dão um lição e tanto, não é? Dona Marisa me ensinou bastante nesse momento.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Fico feliz que tenha gostado, afinal você também escreve e consegue ter uma visão diferenciada. Obrigada!

      Excluir
  12. Olar! Meu Deus, que texto mais lindo, não vou mentir, me choquei com o final e pensei ' poxan não faz isso comigo ' UHUSHUSHU. No começo achei que você estava contando sobre si diretamente. Infelizmente há muitas vidas solitárias por ai, que vive com aleatoriedade na mente, porém nunca sabemos.
    Adorei o texto, parabéns.
    BEIJU!

    devaneiosbm.blogspot.com.br

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Tenho um pouco de mim no texto sim, mas os personagens são fictícios, Nunca tive pai, nunca conheci uma Marisa. Que bom que gostou do conto. bjs

      Excluir
  13. Amei o texto, porque é realmente algo pra se pensar, né? A gente não pode viver a vida só olhando na janela...
    Beijos
    Mari
    www.pequenosretalhos.com

    ResponderExcluir
  14. Nossa que texto lindo e emocionante e quando comecei achei que vc realmente estava contando uma história que você viveu de tão bem escrita que estava, com tantos detalhes.
    Beijos,

    Amanda
    http://talesandtalks.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Amanda tem uma parte de mim nesse conto sim, mas realmente são personagens s fictícios.rsrs Obrigada! bjs

      Excluir
  15. É sempre bom cumprimentar os vizinhos e também não julgar antes de conhecer a história da pessoa. Belo texto.

    ResponderExcluir
  16. Nossa, que texto doce!
    Lindo, me fez pensar nas donas Marisas da minha rua e até mesmo dá minha avó, um comportamento sempre tem um por que e ás vezes é falta de algo =/
    www.cantinhob.com

    ResponderExcluir
  17. Comecei a ler, terminei e fui pensando "OMG! Já acabou?". Eu adorei *-* a leitura fluiu tão bem; o final foi super peculiar, mas muito legal :)

    Você é muito criativa ;*; parabéns!

    Beijos ❤️

    ResponderExcluir
  18. Oie, tudo bem? Que texto mais incrível e surpreendente no final. É incrível como as vezes julgamos as pessoas ou desejamos ter a vida delas mas não sabemos nadinha o que se passa de verdade. Um jeito bem diferente de ver a vida, um novo ângulo. Beijos, Érika ^-^

    ResponderExcluir
  19. Apesar de tirar uma lição do texto, não gosto de histórias tristes. =/

    Memórias de uma Guerreira

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eu também não gosto, mas a vida é feita de alegrias e tristezas.Aprender a viver tendo consciência disso, e saber lidar é muito importante para o crescimento do ser humano. afinal não vivemos numa redoma.

      Excluir
  20. Que criatividade é essa, gente?! Que texto maravilhoso, intenso e um pouco triste. Parabéns por escrever tão bem e por transbordar sentimentos em palavras. <3
    www.amordevaranda.com

    ResponderExcluir
  21. Que texto lindo. Primeiro pensei que era um relato seu da sua rotina e tudo mais. Mas depois, vi que era um conto mesmo :33 Curti bastante! Triste pela Dona Maria, queria abraçar ela agora ó_ò

    http://pequenomundodesarah.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é, isso faz parte da vida, nem tudo é alegria. Obrigada! bjs

      Excluir
  22. Meu Deus que texto maravilhoso, parabéns tem talento viu !

    http://sindromedoluxo.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
  23. Adorei o texto! Parabéns, sua escrita é ótima, você tem talento e leva jeito pra escrever contos! Amei! Bjuus! <3

    ResponderExcluir
  24. Texto intenso e maravilhoso, gostei muito!

    Beijos

    Blog: Senhorita Marmelada
    Instagram: @caroldelacroix

    ResponderExcluir

Formulário de contato

Nome

E-mail *

Mensagem *